segunda-feira, 19 de junho de 2017
A Síndrome do Melindre
Não se deve comprometer a causa simplesmente para atender aos caprichos de alguém.
Os melindres são os verdadeiros fantasmas de um Centro Espírita.
Associado às mágoas e ressentimentos, contribuem para fragilizar os laços humanos.
Kardec nos falou, em dois momentos, sobre esse fantasma.
Destacamos, primeiramente, o escrito em Obras Póstumas
(1ª Parte – O Egoísmo e O Orgulho):
"A exaltação da personalidade leva o homem a considerar-se acima dos outros. Julgando-se com direitos superiores, melindra-se com o que quer que, a seu ver, constitua ofensa a seus direitos."
Obviamente, Kardec relaciona o melindre como decorrência do orgulho ferido, associado a um sentimento de inflação do ego.
Num segundo momento, em discursos pronunciados nas Reuniões Gerais dos Espíritas de Lyon e Bordeaux afirma:
"Há, ainda, aqueles cuja susceptibilidade é levada ao excesso; que se melindram com as mínimas coisas, mesmo com o lugar que lhes é destinado nas reuniões, se não os põem em evidência(...)".
Pode-se compreender o melindre, pelo viés psicológico, como um artifício usado pelo ego para preservar sua própria identidade.
De tal forma, que quando o ego se sente "ameaçado"
(ou desestabilizado por algo ou alguém), reage através de um "fechamento psíquico", de um retraimento emocional, visando preservar, numa atitude defensiva e imatura, as estruturas (orgulho, vaidade...) do próprio Eu.
Em certa Sociedade Espírita, um trabalhador tinha por hábito, no momento do passe, apertar a cabeça dos atendidos com as mãos.
Imagine! Sendo alertado (educadamente) por um dirigente da Instituição, que tal prática não se coaduna com os ensinos espíritas, ficou... "melindrado". Em um grupo de estudos, alguém ao fazer a leitura de O Livro dos Espíritos, leu errado uma palavra.
Um dos integrantes lhe corrigiu, naturalmente.
A pessoa se melindrou e quase abandonou o estudo. Poderíamos ficar exaustivamente citando inúmeros exemplos.
Quando a pessoa se sente melindrada, deve se questionar sobre isso.
O certo é que o melindre está associado, no mínimo, a três elementos básicos: orgulho ferido, insegurança pessoal e baixa autoestima.
Dessa forma, o melindre seria um primeiro estágio de outros sentimentos que poderão se seguir, como a mágoa, o ressentimento, a raiva e até a agressividade.
Há determinadas contingências que podem tornar a pessoa mais propícia ao melindre, como estresse, separação conjugal, problemas familiares, desemprego, a experiência de uma frustação, etc.
O fortalecimento emocional e espiritual é imperativo para o enfrentamento de tais desafios.
O melindre e seus derivados, quando não administrados, significam a negação do próprio sujeito, enquanto ser que possui responsabilidades por sua evolução.
Mas Allan Kardec também nos fala da "indulgência recíproca" que deveria mover os seres humanos, situados num patamar de incompletude espiritual. Indulgência para com as imperfeições dos outros não é sinônimo de inoperância diante do erro.
Ou seja, no grupo espírita não é razoável, diante de algo que esteja errado, fazer-se silêncio, simplesmente, para não "melindrar" este ou aquele.
O compromisso maior de todos é com a Doutrina Espírita em primeira instância, e com a instituição
em segunda.
A forma de abordagem é que deve estar fundamentada na indulgência, não o erro.
A grande questão é que necessitamos dissipar essas relações melindrosas e inócuas, que em nada contribuem para a vida de relação, substituindo-as por atitudes verdadeiramente cristãs.
O Espiritismo é uma doutrina de vida para "uso diário".
Quando percebermos que é forte o impulso para melindrar-nos ou magoar-nos, busquemos o recurso da oração, imediatamente, a fim de administrarmos mentalmente esses corrosivos sentimentos, adversários da paz.
A oração é valioso recurso para a manutenção do equilíbrio da alma, pois potencializa o pensamento para os ângulos positivos da vida, buscando a serenidade das emoções.
Portanto, há duas questões fundamentais: a responsabilidade de administrarmos esses sentimentos em nós, e como agirmos diante dos melindres alheios.
Somos de opinião que não devemos ter, na Casa Espírita, uma preocupação exagerada com os melindres e os melindrosos para não nos tornarmos reféns deles.
Exige-se, como é natural em qualquer outra instituição, que se discuta fraternamente projetos, metas, trabalhos, questões doutrinárias etc., que se busque dar cumprimento aos normativos da instituição, tais como o Estatuto e o Regimento Interno.
As atividades de qualquer Centro Espírita necessitam obedecer a certas disciplinas, e os trabalhadores e estudantes necessitam estar inseridos nesse contexto para o bom funcionamento da instituição.
Tudo isso sem dogmatismos, sem autocracias ou fundamentalismos. Jamais, sob qualquer pretexto, poderá se cercear a liberdade de pensamento e expressão de quem quer que seja.
Todavia, deixar de cumprir os normativos, sob pretexto de "não melindrar" este ou aquele indivíduo é, no mínimo, um despropósito associado à irresponsabilidade daqueles que possuem a função de administração.
Tornar-se omisso para não se "indispor" com alguém, é uma postura totalmente equivocada, fundada numa lógica perversa,
que contribui para aumentar os problemas da Instituição.
Arrolam-se desculpas do tipo: "necessitamos ser tolerantes", "caridosos", "pacientes"...
E, enquanto demonstramos nossas "virtudes" (desvirtuadas) para não ferirmos as "almas frágeis" de nosso Centro, a disciplina, os desvios doutrinários, as inoperâncias, os desvios monetários, assolam livres.
Torna-se necessário pensarmos sobre os limites da "tolerância" no âmbito das Casas Espíritas.
Não se trata, obviamente, da adoção por parte dos dirigentes, como já observamos, de posturas fundamentalistas ou verticalizadas.
A tolerância com quem está seriamente comprometido com a Causa tem seus limites naturais.
Não se deve comprometer a Causa, simplesmente para atender aos caprichos de alguém.
Uma orquestra necessita, para o grande concerto, estar o mais bem afinada possível.
Aquele candidato a músico que não aprendeu a tocar para estar em sintonia com o conjunto não poderá participar diretamente do concerto.
Por isso, trabalhadores e estudantes que não estejam afinados com o grupo e com a orientação doutrinária e/ou administrativa, melindrando-se com facilidade diante dos mínimos eventos, terminam por afastarem dos labores assumidos.
É necessário respeitar a decisão de cada um.
A filosofia da convivência implica numa ética do cuidado.
Assim como a permissividade ou a indiferença projetam seus frutos negativos para a instituição, da mesma forma deve-se cuidar com a síndrome da intolerância.
Em tudo na vida o bom senso é imperativo para uma performance positiva.
Constata-se atualmente uma cultura dos extremos, dos "oito ou oitenta", tudo em nome de uma busca por afirmação, muitas vezes, do próprio narcisismo.
Associado, por extensão, aos melindres e mágoas, encontra-se o ressentimento.
A psicanalista Maria Rita Kehl, em seu livro sobre o assunto, analisa o que denomina de "ganhos subjetivos do ressentimento".
Para ela, o ressentido é um vingativo não declarado.
Mas também é alguém que atribui sempre a um outro a culpa por seus agravos.
O ressentido assume papel de vítima e, com isso, foge das responsabilidades que cabem no processo.
Aí estão os ganhos do ressentimento!
Revestir-se da vitimização, criar a figura de um culpado exclusivo para manter-se numa postura cômoda de alguém livre de responsabilidades.
É sem dúvida, um mecanismo perverso do Eu (conscientemente ou não) que denota um nível de imaturidade psicológica associada a uma morbidez da alma.
( Do livro: A convivência na Casa Espírita: reflexões e apontamentos com base nas instruções de Allan Kardec, de Jerri Roberto Almeida. Porto Alegre: Editora Francisco Spinelli, 2ª ed, 2011, pag. 57 a 61).
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